
Muito se fala em direita no Brasil, mas pouco se compreende do que isso realmente significa. E quando fui desafiado a comparar duas figuras emblemáticas — Enéas Carneiro e Jair Bolsonaro — a confusão ideológica virou regra. Ambos são rotulados como “de direita”, mas trilharam caminhos profundamente distintos. Afinal, quem era mais direitista: o médico cardiologista, físico, matemático, professor e escritor explosivo do bordão “meu nome é Enéas” ou o capitão que chegou à presidência embalado pela onda antipetista e religiosa com o slogan: “Deus Pátria e Família“?
A resposta não é simples — e talvez surpreenda quem se acostumou a identificar “direita” com privatização, conservadorismo e ódio ao comunismo.
A direita que estuda vs. a direita que grita
Enéas representava uma direita culta, nacionalista, defensora do Estado forte, do investimento em ciência, tecnologia e soberania. Era antiglobalista, avesso à submissão do Brasil a organismos financeiros internacionais, e tinha profundo desprezo pelas elites econômicas entreguistas. No Congresso, embora isolado, era respeitado pela coerência e pelo conhecimento técnico. Falava em reerguer a pátria com livros, tanques, dignidade e ser forte e respeitado desenvolvendo a bomba atômica.
Bolsonaro, por outro lado, personificou a direita do ressentimento. Eleito na esteira do antipetismo e das redes sociais, surfou em slogans rasos, numa retórica moralista e num nacionalismo mais simbólico do que estratégico. Entregou o comando da economia a um banqueiro liberal [Paulo Guedes], vendeu estatais, desdenhou da educação pública, e trocou o nacionalismo real por um alinhamento submisso ao trumpismo e aos Estados Unidos. Nunca formulou um projeto de país. Governou no improviso e na polarização.
Na economia: Enéas era menos mercado, mais nação
Enquanto Bolsonaro seguiu a cartilha do “Estado mínimo”, Enéas pregava o oposto: defendia o monopólio estatal do petróleo, controle de capitais, reconstrução das Forças Armadas e rompimento com o FMI. Considerava a soberania econômica a base da independência política. Tinha, paradoxalmente, uma visão que em muitos aspectos se alinha mais à velha esquerda do que à direita liberal.
Nesse sentido, Bolsonaro foi mais “direita de mercado”. Já, Enéas, mais “direita de projeto nacional”.
Nos costumes: conservadores por razões diferentes
Ambos conservadores nos costumes. Mas há nuances importantes. Enéas baseava sua moral em princípios filosóficos, científicos e patrióticos. Era contra o aborto, sim, mas também contra a ignorância. Já Bolsonaro usou a fé como palanque, associou sua imagem à Bíblia e terceirizou o discurso para líderes evangélicos. Um agia por convicção; o outro, por conveniência eleitoral e familiar.
A pátria como missão ou como marketing
Enéas sonhava com um Brasil altivo, respeitado, autônomo. Rejeitava qualquer dependência externa. Sua visão de defesa incluía educação, ciência, soberania energética e poder militar como instrumentos estratégicos. Bolsonaro, embora fale em pátria e bandeira, entregou a política externa a ideólogos radicais, atacou parceiros comerciais e isolou o país. A pátria de Enéas era projeto; a de Bolsonaro, marketing.
Minha conclusão: a direita perdeu Enéas [1938 a † 2007 – 68 anos] cedo demais
Se considerarmos “direita” como defesa de valores tradicionais, segurança pública, ordem e amor à pátria, ambos podem ser classificados nesse campo. Mas Enéas foi, sem dúvida, mais profundo, mais sério e mais comprometido com um Brasil soberano e tecnicamente preparado. Bolsonaro, ao contrário, encarnou uma direita superficial, reativa e midiática — que cresceu na lacração e governou na base do improviso.
Talvez o Brasil nunca tenha sido maduro o suficiente para entender Enéas em vida. Mas o tempo — e minha comparação — tentam fazer justiça à sua memória.