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Amanda e Sérgio foram alvo de mensagens de cunho racista em Porto Alegre — Foto: Arquivo Pessoal

Em mensagens enviadas à namorada de Jota Júnior, Álvaro Hauschild questiona relacionamento do casal, diz que negro ‘tem um cérebro programado para fazer o máximo de filhos que puder’ e que ‘pode não ser um problema lá onde a natureza dá cabo deles’

A Polícia Civil do Rio Grande do Sul instaurou um inquérito para apurar um suposto caso de racismo denunciado por um estudante da Universidade Federal do estado (UFRGS), após Álvaro Hauschild doutorando em Filosofia da mesma instituição enviar à sua namorada mensagens ofensivas a seu respeito. Nelas, às quais o GLOBO teve acesso, Álvaro Hauschild afirma que o negro “exala um cheiro típico”, “tem um cérebro programado para fazer o máximo de filhos que puder” e que “pode não ser um problema lá onde a natureza dá cabo deles”.

As mensagens foram enviadas na última quarta-feira para Amanda Klimick, namorada do estudante de Políticas Públicas Jota Júnior, de 23 anos, que registrou ocorrência no dia seguinte na Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância da capital gaúcha. O casal achou no início que se tratava de um flerte até que a conversa começou a ficar mais ofensiva.

Ele afirma que Amanda Klimick “merece coisa melhor”, e faz afirmações como a de que os negros possuem características genéticas diferentes, e exalam cheiro típico.

“Pensa que assim como no gene o negro é dominante, ele também exala um cheiro típico, libera substâncias no ambiente e na troca com parceiros. Por isso, os europeus são protetores, “patriarcais”, porque se não fosse isso eles perderiam potencialmente a etnia. As mulheres sempre foram muito protegidas contra influências de estranhos, sobretudo negros”, diz a mensagem.

Ao g1, o suspeito disse que “está saindo uma enxurrada de fake news muito graves a meu respeito” e informou que deve buscar assessoramento jurídico. Na manhã desta terça (5), ao ser questionado sobre a expressão “exala um cheiro típico”, ele informou que “não há a menor carga de racismo ou injúria”, e que “deve esse debate às autoridades”.

“Não sou um demônio, não sou racista e não cometi crime. É por isso que ao invés de simplesmente processar eles quiseram usar de meios mais cruéis para fazer de mim um demônio em sociedade. (…) Isso é criminoso, de má fé, algo muito pior que simplesmente chamar alguém de ‘homúnculo’, como o rapaz está dizendo que foi chamado”.

Investigação

O caso está na Delegacia de Combate à Intolerância, em Porto Alegre. A titular, delegada Andréa Mattos, confirma que já ouviu Sérgio e a namorada dele, a psicóloga Amanda Klimick, de 23 anos, testemunha dos fatos. O suspeito deve ser ouvido nesta semana.

A coordenação do Programa de Pós-Graduação em Filosofia afirmou em nota que “examinou de forma tempestiva – e não de agora – uma série de denúncias de discurso discriminatório e de ódio por parte de discente do Programa, recebidas em julho deste ano”.

Em 12 de agosto, o programa encaminhou denúncias ao Núcleo de Assuntos Disciplinares da universidade, que recebeu as informações e recomendou a abertura de um processo disciplinar.

Entenda o caso

De acordo com Sérgio, conhecido como Jota Júnior, o suspeito começou a enviar mensagens para Amanda no dia 29 de setembro. Segundo ele, a primeira impressão do casal é que seria um flerte. Depois, acreditou que poderia ser uma crítica política ao posicionamento ideológico de Júnior, que se define como um progressista nas questões sociais mas ortodoxo na economia.

Porém, ao citar alguns termos específicos, como “pura” e “inocente”, eles suspeitaram que o cunho era racista.

“Como trabalho a questão racial há algum tempo, fez com que tivesse uma associação instantânea a palavras de cunho nazista. Acho que tem uma questão racial”, afirma Sérgio.

Sérgio e Amanda passaram a estimular o suspeito a argumentar sobre seu pensamento. E, ao ser inquirido sobre as motivações das mensagens, os ataques continuaram, inclusive com questionamentos sobre futuros filhos do casal e suposta perda da “carga genética prussiana”.

“Preciso ter certeza que este é um cidadão racista. Não vou perder meu tempo para dizer que é injúria racial. Mas se afetou toda uma comunidade, é meu dever como negro seguir com isso até o final”, explica Sérgio.

‘Nosso filho vai ser minha cara com o teu sorriso’

Os registros das conversas e demais elementos foram entregues à polícia no dia 30. A delegada Andréa confirma que o suspeito já respondeu a termos circunstanciados por outros delitos este ano em Arroio do Meio e na Capital.

“Ele tem antecedentes por injúria, perturbação da tranquilidade e perseguição”, cita.

No mesmo dia, uma postagem expondo as mensagens foram publicadas por Sérgio no Instagram e, até a publicação desta reportagem, tinha mais de 37 mil curtidas, a maioria em apoio a ele.

“A minha intenção ao combater o racismo e ir com essa história até o final, além de servir de exemplo para muitos negros, estou procurando justiça. Mas eu tenho ciência de que eu não estou combatendo o racismo. O racismo será combatido quando nós negros tivermos a capacidade de tomar espaços dentro da esfera de poder brasileira, seja no setor público, seja no setor privado, seja na política”, assinala o estudante de políticas públicas.

Na foto que ilustra a última postagem, o casal aparece com um trecho da música “Surpresa”, de Cleverson Luiz, que embala a relação há dois anos: “Nosso filho vai ser minha cara com o teu sorriso”.

“Nós compartilhamos não somente de sonhos, não somente de expectativas, mas desde o primeiro momento nós desejamos compartilhar uma vida juntos. E a miscigenação nunca foi nenhum problema”, conclui.

Nota da UFRGS

Em razão de mensagens que circulam nas redes sociais envolvendo relatos de que um estudante de curso da UFRGS haveria feito manifestações ofensivas, a Secretaria de Comunicação Social esclarece que a Instituição repudia qualquer forma de discriminação. Ressalve-se que, no caso em questão e em toda situação congênere, esta tipificação somente poderá ser caracterizada após a avaliação pelas instâncias competentes, condicionada inicialmente à decisão da direção do curso ao qual o estudante esteja vinculado pela abertura ou não de procedimento investigatório.

Nota do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A respeito de recentes denúncias de ataques racistas perpetrados por um membro de seu corpo discente, e diante do caráter pouco informativo das notas publicadas recentemente por outras instâncias da Universidade, o Programa de Pós-Graduação em Filosofia vem tornar públicas, não apenas suas posições, mas sobretudo as ações que vem tomando para ver punidas e coibidas quaisquer formas de discriminação, racismo, injúria racial, desrespeito e assédio, em ações ou palavras, no âmbito do Programa.

Já tivemos a oportunidade de explicitá-lo por ocasião do início do atual semestre letivo em nossa Carta à Comunidade do PPGFil e temos traduzido esse compromisso em ações concretas.

Em conformidade com seus deveres institucionais e observando as normas da UFRGS, a coordenação do PPGFil examinou de forma tempestiva – e não de agora – uma série de denúncias de discurso discriminatório e de ódio por parte de discente do Programa, recebidas em julho deste ano. Tendo constatado a gravidade dos fatos, o Programa encaminhou no último dia 12 de agosto tais denúncias ao Núcleo de Assuntos Disciplinares (NAD) da UFRGS, que emitiu um juízo de admissibilidade sobre as informações trazidas e recomendou à unidade responsável (no caso, o IFCH), a abertura de processo disciplinar.

Nesse sentido, o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS junta-se publicamente à pressão da comunidade universitária e da sociedade civil para que não haja complacência com infrações de nossos códigos disciplinares e, em especial, com violações dos direitos e garantias fundamentais protegidos por nossa Constituição.

Declaramos ainda nosso compromisso de continuar trabalhando para que eventos semelhantes não se repitam.

Porto Alegre, 04 de outubro de 2021