Protesto de homem negro – o deputado federal Hélio Lopes -, com camisa pró-Israel, Bíblia nas mãos e esparadrapo na boca, escancara como o racismo estrutural sequestra corpos e narrativas — até transformá-los em defensores das estruturas que historicamente os oprimiram.
A imagem é emblemática e, ao mesmo tempo, perturbadora: um homem negro brasileiro, com esparadrapo na boca, empunhando uma Bíblia e vestindo uma camisa pró-Israel, protesta em silêncio diante do Supremo Tribunal Federal. Para muitos, um símbolo de fé e coragem. Para quem conhece a história da escravidão, da diáspora africana e da luta antirracista, um retrato doloroso da alienação histórica que o racismo estrutural produz.
🗣️ DEPUTADO HÉLIO LOPES, O “HÉLIO NEGÃO”, MONTA ACAMPAMENTO EM PROTESTO SOLITÁRIO NO STF E É ABORDADO PELA POLÍCIA
🚨 Policiais abordam o deputado Hélio Lopes durante seu protesto silencioso em frente ao STF. Sentado com Bíblia, Constituição e esparadrapo na boca, ele foi… pic.twitter.com/uAkbPrriGP
— InFoco (@VivainFoco) July 25, 2025
Este texto não se volta contra esse homem em particular. Volta-se contra a construção social que o levou até ali. Contra o processo que sequestra símbolos, silencia memórias e reverte a luta ancestral dos negros brasileiros em defesa de uma pauta que não é sua — nunca foi.
O corpo negro como território de disputa
Ser negro no Brasil é carregar nos ossos e na pele os rastros de uma história que começou nos porões dos navios negreiros. O corpo negro, desde então, foi instrumento de trabalho forçado, alvo de controle, símbolo de resistência e — mais recentemente — campo de disputa simbólica. Um protesto como o que se viu diante do STF não pode ser lido apenas pelo presente. Ele exige a lente da história.
Ali está um corpo negro com a boca selada por esparadrapo — gesto que, à primeira vista, parece denunciar censura. Mas o silêncio imposto aos negros não foi metafórico. Foi literal. Foram séculos de vozes cortadas, línguas apagadas, histórias suprimidas, religiões perseguidas, saberes criminalizados. O esparadrapo, nesse contexto, não denuncia censura: reedita uma cena cruel — agora voluntariamente.
A Bíblia e o apagamento das ancestralidades
Na mão, ele carrega uma Bíblia. O livro sagrado do cristianismo foi, para muitos africanos escravizados, tanto instrumento de dominação quanto ferramenta de resistência. Colonizadores europeus usaram textos bíblicos para justificar a escravidão e demonizar as religiões africanas. Ao mesmo tempo, os negros reinterpretaram as Escrituras para alimentar sua fé na liberdade e construir comunidades de resistência.
Mas quando a Bíblia é empunhada para justificar a intolerância, o moralismo, o silenciamento e a adesão a projetos políticos que excluem, ela deixa de ser instrumento de libertação — e volta a operar como ferramenta de submissão. Fé e opressão nunca andaram tão próximas quanto quando se fundem sem crítica.
Israel como símbolo: aliança religiosa ou contradição histórica?
A camisa pró-Israel revela outra camada simbólica profunda. O apoio ao Estado de Israel, entre muitos evangélicos brasileiros, é alimentado por visões escatológicas e vínculos ideológicos com o conservadorismo político. No entanto, o Estado moderno de Israel, longe da narrativa bíblica, é acusado por organismos internacionais de manter políticas de apartheid contra o povo palestino.
A ironia se impõe: um homem negro — herdeiro da escravidão e da exclusão racial — veste a camisa de um Estado que hoje oprime outro povo racializado. O que nos mostra como o racismo estrutural não apenas marginaliza, mas, quando mais sofisticado, reconstrói identidades em moldes que silenciam as lutas e invertem os papéis históricos.
Contra o STF: quando o oprimido se alinha ao opressor
O alvo do protesto, o Supremo Tribunal Federal, é acusado por esse homem de calar sua liberdade de expressão. A crítica é legítima — em qualquer democracia. Mas precisa vir com lucidez. Nos últimos anos, o STF foi palco de decisões que ampliaram direitos civis, protegeram populações vulneráveis e barraram retrocessos autoritários. Ainda que controversa em alguns julgamentos, a Corte tem sido, dentro da frágil institucionalidade brasileira, mais escudo que espada para as minorias.
É nesse ponto que o protesto beira a tragédia simbólica. O homem negro que silencia diante do STF, se dizendo perseguido, esquece que seu povo foi, por séculos, legalmente perseguido por tribunais, leis e juízes que viam o negro como coisa, não como cidadão. O que hoje ele chama de censura, seus ancestrais chamariam de privilégio: poder se manifestar, ainda que com crítica, diante da mais alta Corte do país — em liberdade.
Quando o gesto fere a memória
A luta negra no Brasil nunca foi neutra. Sempre soube identificar quem oprimia e quem lutava por justiça. Sempre soube distinguir fé de dominação, espiritualidade de colonização, protesto de manipulação. Por isso, a imagem desse homem negro é mais que contraditória — é dolorosa. Porque escancara o quanto o racismo estrutural é capaz de capturar a alma, distorcer a narrativa e devolver o negro como ator de uma peça que não escreveu — e da qual não deveria ser figurante, mas autor.
Não se trata de censurar seu direito de expressão, mas de questionar o significado do que está sendo expresso — e de onde vem essa narrativa. Quando um homem negro se posiciona contra a Corte que, com todos os seus limites, tem protegido direitos das minorias, enquanto veste símbolos alinhados ao colonialismo moderno, não é apenas ele que se manifesta: é a história que se contorce.
Tirá-lo de frente do STF, aqui, não é calá-lo — é libertá-lo. Libertá-lo de uma encenação que contradiz séculos de luta, de uma fé colonizada que sufocou os tambores dos seus ancestrais, de uma cegueira política que transforma o oprimido em instrumento da própria opressão.
Porque a verdadeira liberdade de um povo negro começa quando ele reconhece a si mesmo — e recusa qualquer papel que não tenha escrito com as próprias mãos.





