
Aos 27 anos, Lígia Fonseca se torna a primeira médica quilombola da cidade de Goiás e inspira uma nova geração a acreditar no poder da educação

No Hospital de Caridade São Pedro de D’Alcântara, na cidade de Goiás, a história se repete — mas de um jeito transformador. Por quase 20 anos, os corredores da unidade foram varridos e lavados por Ione Francisca, funcionária da limpeza, parteira e benzedeira conhecida na comunidade. Hoje, quem percorre os mesmos corredores de jaleco branco é a neta dela, Lígia Fonseca, 27 anos, a primeira médica quilombola a atuar no município.
“O lugar que eu ocupo hoje não é fácil. Me emociono em saber que a minha avó trabalhou aqui em um serviço desvalorizado”, disse Lígia, com a voz embargada.
Raízes que sustentam sonhos
Lígia nasceu e cresceu no quilombo Alto Santana, reconhecido oficialmente em 2017 pela Fundação Cultural Palmares. A comunidade, apelidada de “Chupa Osso” devido às dificuldades financeiras de seus moradores, guarda lembranças de resistência e união. “Minha avó foi trabalhadora de serviços gerais por muitos anos. As famílias dali, sem condições de comprar carne, recorriam aos ossos que sobravam nos açougues. Hoje, esse nome é usado como forma de força e ressignificação”, conta.
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O vínculo com a avó é central em sua trajetória. Embora Ione tenha falecido em 2018, antes de ver a neta entrar na universidade, sua memória acompanha cada conquista.
Do sonho ao jaleco
O desejo de ser médica começou ainda na infância, incentivado pelo pai. Mas o caminho não foi fácil. Depois do ensino médio, Lígia ganhou uma bolsa em cursinho preparatório, mas não conseguiu aprovação. Sem recursos para seguir estudando fora, voltou-se para livros em casa.

Na segunda tentativa, passou para Biomedicina em Jataí, mas o coração pedia Medicina. Persistente, fez novamente o Enem em 2019 e, graças ao programa de cotas para quilombolas da Universidade Federal de Catalão (UFJ), conseguiu finalmente ingressar no curso dos sonhos.
Foram anos de luta: mudança de cidade, dificuldades financeiras, estudo intenso e apoio de amigos. Em maio de 2025, veio a formatura. Pouco depois, ela enviou currículo ao hospital em que nasceu e onde a avó trabalhou — e foi contratada como clínica geral.
Representatividade que transforma
A chegada de Lígia não passou despercebida. Em nota oficial, o hospital celebrou:
“Ela representa a conquista de gerações e a esperança de um futuro com mais equidade na saúde.”
Nas redes sociais, a médica também refletiu sobre o simbolismo da sua trajetória:
“Esse momento não é só sobre me tornar médica. É sobre luta. Sobre ocupar um espaço que durante muito tempo não foi pensado para pessoas como eu.”
Ela destacou ainda que, durante sua graduação, o número de estudantes pretos e pardos em Medicina cresceu 690%, mas ainda representam apenas 27% dos ingressos nas universidades públicas.
Inspiração para o futuro
Para Elenízia da Mata, secretária de Igualdade e Equidade Étnico-Racial da Prefeitura de Goiás, a conquista de Lígia simboliza muito mais do que uma vitória individual.
“Celebramos a vitória dela, mas também denunciamos o apagamento da presença negra e indígena em Goiás. A chegada de Lígia mostra que apostar na educação é um caminho real para a mobilidade social.”
Elenízia conheceu Ione, a avó da médica, e recorda relatos de episódios de racismo sofridos por ela dentro do hospital. “Ver esse ciclo se fechar traz esperança.”
Ciclo que se fecha
Hoje, enquanto atende seus primeiros pacientes, Lígia já vê outras jovens da comunidade seguindo passos parecidos. “Já temos outra quilombola do Alto Santana cursando Medicina na UFJ. Aos poucos, vamos descentralizar essa medicina elitizada.”
O jaleco branco que veste carrega mais do que um título profissional: carrega a memória da avó, a força de uma comunidade inteira e a promessa de que novos caminhos estão sendo abertos.



