Decisão transforma punição em ação reparadora para estudantes negros e expõe consequências sociais para quem tenta burlar políticas afirmativas
Acordo firmado com o MPF transforma punição em reparação social, financia bolsas para alunos negros e impõe curso obrigatório de letramento racial à médica que usou indevidamente vaga destinada a cotistas.
A tentativa de burlar um sistema criado para corrigir desigualdades históricas resultou em uma reparação milionária: a médica Mariana Barbosa Lobo, que ingressou no curso de Medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) declarando-se indevidamente como cotista racial, terá de pagar R$ 720 mil por ter fraudado o sistema. O valor será destinado a ações de incentivo e formação para estudantes negros — justamente aqueles que deveriam ter sido beneficiados na época da fraude.
O caso, tratado pelo Ministério Público Federal (MPF) como emblemático, funciona agora como alerta claro e pedagógico para quem insiste em subverter políticas públicas de inclusão racial e social.
Reparação financeira e obrigação educacional
O acordo foi formalizado por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a médica, o MPF e a Unirio. A dívida será quitada em 100 parcelas mensais de R$ 7,2 mil, a partir de janeiro de 2026, com correção anual pela inflação.
O dinheiro bancará bolsas para estudantes negros do curso de Medicina que ingressarem pelo sistema de cotas e também custeará o curso de Letramento Racial da universidade. Parte da reparação é justamente devolver à comunidade acadêmica negra aquilo que teria sido retirado dela com a declaração falsa.
Além da indenização, o TAC impõe uma medida inédita: Mariana Lobo deverá participar integralmente do curso de Letramento Racial, com 45 horas de aulas teóricas e 15 horas práticas, avaliação de trabalhos e frequência mínima de 75%. As aulas são síncronas e obrigatórias.
O caso: fraude, processo e diploma
A médica ingressou na Unirio pelo SISU de 2018, utilizando vaga reservada a pretos, pardos e indígenas. A denúncia de fraude levou à abertura de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Mesmo assim, a então aluna conseguiu na Justiça Federal uma decisão liminar que impediu o cancelamento de sua matrícula. Com isso, concluiu o curso e recebeu o diploma em fevereiro de 2024.
Agora, quase um ano após a formatura, responde de forma material e simbólica pelos danos sociais produzidos.
Repercussão e mensagem pública
A Educafro, organização que atua pela inclusão da população negra nas universidades, recebeu o TAC como um marco. Para o diretor-executivo, frei Davi Santos, o gesto de reparação deve ser replicado por outros que também fraudaram o sistema.
“O nosso sonho é que mais pessoas brancas que usaram equivocadamente a vaga de pessoas negras façam gesto igual ao da ex-aluna da Unirio”, afirmou.
Um caso que deixa lições
Para além da punição individual, o episódio expõe a importância de reforçar que fraudar cotas não é esperteza: é violação de direito coletivo. Cada vaga ocupada de forma indevida representa um estudante negro impedido de acessar oportunidades historicamente negadas.
A reparação imposta à médica pode se tornar exemplo nacional de que o combate às fraudes raciais nas universidades está amadurecendo — e de que a sociedade exige responsabilidade daqueles que tentam se beneficiar às custas das políticas de inclusão.




