
Erro com adrenalina e decisões opostas da Justiça expõem alerta crítico para profissionais de saúde: responsabilidade técnica, segurança do paciente e riscos legais
A morte do menino Benício Xavier, de 6 anos, após a aplicação incorreta de adrenalina em um hospital particular de Manaus, abriu uma discussão que ultrapassa o campo jurídico e atinge diretamente o ambiente assistencial. O caso colocou frente a frente uma médica e uma técnica de enfermagem — ambas investigadas — e terminou com decisões distintas no Tribunal de Justiça do Amazonas: habeas corpus concedido para a médica e negado para a técnica. Para quem atua na linha de frente do cuidado, os fundamentos dessas decisões jogam luz sobre pontos sensíveis das práticas assistenciais, da cultura de segurança e da responsabilidade profissional.
Segundo o inquérito, a médica Juliana Brasil Santos prescreveu uma dose e uma via de administração incompatíveis com o uso seguro da adrenalina em pediatria, enquanto a técnica de enfermagem Raiza Bentes Praia aplicou o medicamento por via intravenosa e sem diluição. A dinâmica expõe um cenário extremo de falhas em cadeia: prescrição inadequada, dúvida técnica no momento do preparo, ausência de barreiras de segurança e execução sem checagem clínica robusta, contrariando diretrizes essenciais da segurança medicamentosa.
As duas profissionais respondem ao inquérito em liberdade, mas apenas a médica obteve habeas corpus. Para a desembargadora que analisou o pedido, não havia risco concreto à ordem pública nem indícios de que Juliana pudesse interferir na investigação ou repetir a conduta, destacando ainda vínculos profissionais, colaboração com o inquérito e laudo psiquiátrico que indicava fragilidade emocional. No caso da técnica, o desembargador responsável entendeu que persistem riscos relevantes, apontando a gravidade concreta da conduta, a possível violação da confiança inerente ao exercício profissional, a repercussão social da morte e a investigação paralela de supostos crimes como falsidade ideológica.
Para o campo da saúde, o contraste entre as decisões expõe a centralidade dos protocolos e o peso da documentação profissional. Prontuários, fluxos de conferência, assinaturas, registros de preparo e administração de medicamentos tornam-se elementos jurídicos de alta sensibilidade em casos de desfechos graves. Quando passos essenciais não estão documentados — tais como dupla checagem, validação da via, diluição, dose, registro completo do procedimento — o risco legal se amplifica, sobretudo em situações em que há morte e interpretação de condutas à luz do Código Penal.
O caso de Benício também reacende a discussão sobre preparo de equipes para o uso seguro de adrenalina. Em pediatria, a adrenalina intravenosa é uma prática altamente restrita, exigindo indicação precisa, monitorização avançada e preparo adequado. Erros de dose ou via são reconhecidamente potencialmente fatais, o que reforça a necessidade de treinamentos contínuos, revisão de protocolos e presença de listas de verificação atualizadas nas salas de emergência.
Após a primeira aplicação, a criança apresentou piora súbita. Foi encaminhada à sala vermelha, evoluiu para instabilidade grave, precisou de intubação e apresentou múltiplas paradas cardíacas até o óbito, às 2h55. A sequência reforça como decisões iniciais — da prescrição ao preparo e à administração — podem determinar de forma irreversível o curso clínico.
O hospital informou que afastou a médica e a técnica e abriu investigação interna pela Comissão de Óbito e Segurança do Paciente. A Polícia Civil segue apurando os fatos e ainda não divulgou mais detalhes.
Para profissionais de saúde, o caso deixa uma mensagem contundente: falhas de medicação continuam sendo um dos maiores riscos assistenciais e cada etapa do processo — prescrição, preparo, conferência, administração e registro — possui peso clínico e jurídico. A tragédia reforça a necessidade de ambientes em que a dúvida seja tratada como barreira de segurança, e não como hesitação; em que fluxos claros impeçam que uma prescrição inadequada avance; e em que a comunicação entre categorias seja vista como ferramenta de prevenção, não como subordinação automática.



