Em decisões anteriores, Rosa Weber votou favoravelmente a direito das mulheres de escolherem interromper a gravidez. CALOS HUMBERTO/STF
Em decisões anteriores, Rosa Weber votou favoravelmente a direito das mulheres de escolherem interromper a gravidez. CALOS HUMBERTO/STF

A ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber foi sorteada nesta quarta-feira para ser a relatora da ação que pede a ampla legalização do aborto para gestações de até 12 semanas.

A notícia é positiva para aqueles que defendem a legalização. Decisões anteriores de Weber indicam que a ministra tende a votar favoravelmente ao direto das mulheres de interromper a gravidez.

Não é possível saber quanto tempo levará para o processo ser julgado, mas a relatora tem papel fundamental no ritmo do processo. É Weber que dará o primeiro voto e avisará a presidente do STF, Carmén Lúcia, que já é possível pautar o julgamento.

Se fosse sorteado como relator um ministro contrário à legalização do aborto, como parece ser Ricardo Lewandowski, haveria uma probabilidade maior de o caso ficar parado.

Atualmente, a interrupção da gravidez só é permitida no país em três casos: se a mulher corre risco de morrer por causa da gestação; se a fecundação ocorreu por estupro ou se o feto é anencéfalo (sem cérebro) e, portanto, não conseguirá sobreviver após o parto.

Nas demais situações, a gestante que fizer aborto pode ser presa por até três anos, enquanto médicos que realizarem o procedimento podem ser condenados a até quatro.

A ação, proposta pelo PSOL na semana passada com assessoria técnica do instituto de bioética Anis, argumenta que a proibição ampla do aborto afronta preceitos fundamentais da Constituição Federal, como o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros.

As advogadas que assinam a ação destacam que a criminalização do aborto leva muitas mulheres a recorrer a práticas inseguras, provocando mortes.

Elas argumentam também que o problema afeta de forma ainda mais intensa mulheres pobres, negras e das periferias, pois têm menos conhecimento e recursos para evitar a gravidez, assim como menos meios para pagar por métodos abortivos mais seguros, ainda que clandestinos.

Histórico

Em uma decisão proferida no final do ano passado, em julgamento da primeira turma do STF, Weber acolheu exatamente essa linha de raciocínio.

Acompanhando os votos dos ministros Luiz Roberto Barroso e Edson Fachin, a ministra concedeu liberdade a dois médicos acusados de realizar aborto em uma clínica clandestina no Rio.

Em sua decisão, ela seguiu a argumentação proposta por Barroso de que a prisão não deveria ser mantida porque a criminalização do aborto até o primeiro trimestre de gestação é incompatível com direitos fundamentais das mulheres, entre eles os direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade física e psíquica, além de ferir o princípio da igualdade.

Essa decisão, porém, não teve o efeito de liberar o aborto no país. Já a ação do PSOL pode levar à ampla descriminalização se 6 dos 11 ministros concordarem com a argumentação.

O limite ao primeiro trimestre, equivalente a doze semanas, foi proposto por Barroso porque é adotado na maioria dos países que permitem o aborto, como Alemanha, Dinamarca, França, Moçambique, Rússia, Suíça, Uruguai, entre outros.

Weber também votou favoravelmente à legalização do aborto de fetos anencéfalos em julgamento de 2012, citando o “direito de escolha da mulher”. A ação proposta pelo PSOL cita partes do seu voto para fundamentar o pedido de ampla descriminalização.

“A alegria e a realização das mulheres com filhos anencéfalos, relatadas nas audiências públicas e nos memoriais, provêm, por certo, das suas escolhas morais e da garantia de que a percepção de cada uma delas sobre a própria vida e visão de mundo seriam respeitadas, da certeza de que não seriam impedidas de gestar seus filhos com todo amor e de levar a termo suas gestações”, disse a ministra na ocasião.

“Não está em jogo o direito do feto, e sim o da gestante, de determinar suas próprias escolhas e seu próprio universo valorativo. E é isto que se discute nesta ação: o direito de escolha da mulher sobre a sua própria forma de vida.”

Tensão

A abertura dessa discussão no STF tende a gerar fortes reações no Congresso. Logo após a decisão da primeira turma de libertar os médicos acusados de praticar aborto clandestino, parlamentares fizeram duras críticas à corte.

“Revogar o Código Penal, como foi feito, trata-se de um grande atentado ao Estado de direito. O aborto é um crime abominável porque ceifa a vida de um inocente”, disse na ocasião o deputado Evandro Gussi (PV-SP).

Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes disse à BBC Brasil que “com certeza” esse não seria o momento adequado para o Supremo analisar a questão do aborto.

“Vamos aguardar. O momento está muito trincado politicamente e esse é um tema que divide muito, inclusive o Congresso. Nós (o STF) temos muitas tensões abertas com o Congresso, e é uma área em que há convicções muito definidas”, afirmou.

Movimentos contrários ao aborto argumentam que o direito à vida também deve ser garantido ao feto e, por isso, a prática seria inconstitucional.

Esses grupos contam hoje no Congresso com o apoio de uma ampla bancada de parlamentares, em geral católicos e evangélicos, que atuam para impedir a legalização do aborto ou mesmo aumentar sua restrição.

Demora

A definição do relator da ação que pede a legalização ampla do aborto demorou muito mais que o normal, causando inclusive estranhamento dentro do Supremo, segundo apuração da BBC Brasil.

A ação foi proposta pelo PSOL no dia 6 de março, segunda-feira da semana passada. Apenas dois dias depois foi registrada eletronicamente, segundo o Supremo, devido a problemas técnicos no sistema. Demorou ainda uma semana mais para que o caso fosse sorteado.

De acordo com dados da Fundação Getúlio Vargas, entre 2006 e março de 2016 o tempo médio de distribuição de ADPFs (Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental, como essa do aborto) foi de apenas 16 horas. Apenas 2,1% desses processos levaram mais de cinco dias para serem sorteados.

Se for considerado um universo maior, que inclui todos os processos de controle concentrado, caso da ADPF, o resultado é semelhante: o intervalo médio foi de 20 horas e apenas 2,2% das ações foram sorteadas depois de cinco dias do seu registro no sistema.

À BBC Brasil, o Supremo disse que a demora ocorreu porque estava sendo analisado se o processo deveria ser distribuído por “prevenção” a um ministro que já fosse relator de outro processo que trate de aborto.

Esse é o caso da presidente da corte, Cármen Lúcia, relatora de uma ação que pede a legalização da interrupção da gravidez caso a gestante seja infectada pelo vírus Zika. A ministra recebeu o caso em agosto do ano passado e determinou rito de urgência para ele, mas ainda não houve julgamento.

Essa análise de prevenção, porém, também demorou mais que o normal. Segundo os dados da FGV, em casos de ADPFs distribuídas por prevenção, a distribuição demorou em média 18 horas entre 2006 e 2016, e apenas 2,7% dos processos precisaram de mais de cinco dias para ter relator definido.

“Quando há distribuição por prevenção, o procedimento pode levar um pouco mais de tempo, mas as médias ao longo de dez anos mostram que essa demora está bem fora da curva”, afirma o professor Ivar Hartmann, coordenador do projeto Supremo em Números da FGV Direito-Rio.

Transparência

A demora na distribuição de uma ação que toca em um tema polêmico levanta novamente a discussão sobre a falta de transparência do STF na distribuição dos processos, o que já havia ocorrido quando o ministro Edson Fachin foi definido relator das ações da operação Lava Jato, após o falecimento de Teori Zavascki.

Para Hartmann, é fundamental que o STF divulgue o código fonte do programa que faz a distribuição aleatória eletrônica.

Isso porque o código muda diariamente, para reequilibrar a distribuição entre os ministros, o que pode dar margem a alguma manipulação para direcionamento.

“Infelizmente, é mais uma situação em que o próprio tribunal cria a polêmica por não ter simplesmente dado transparência ao sistema de distribuição no passado”, afirma.